Entenda se estoque de alimentos pode baratear a comida; especialistas divergem
Política pública permite que o governo aumente a oferta de produtos para reduzir preços. Custo de manutenção e preço mínimo são desafios para parte dos entrevistados pelo g1.
A inflação dos alimentos ainda não deu trégua para o orçamento do brasileiro. Em 12 meses até agosto, o custo da comida subiu 13,4%, a segunda maior alta dentre os grupos da inflação do país, perdendo apenas para vestuários (17,4%).
Para alguns especialistas, a política agrícola poderia ajudar nesse cenário a partir da formação de estoques públicos de alimentos. A ideia é que o governo venda esses produtos para comercialização, incentivando o aumento da oferta e, portanto, a queda de preços.
Os estoques existem no Brasil, mas, hoje, estão praticamente esvaziados (veja no final da reportagem) e mais focados em socorrer os produtores quando o valor dos produtos agrícolas no mercado fica abaixo de um preço mínimo fixado pelo governo.
Nessas ocasiões, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) – órgão do Ministério da Agricultura – compra os alimentos (arroz, feijão, milho, por exemplo) para evitar que os agricultores tenham prejuízos.
Para alguns especialistas, é possível que os estoques atuem tanto no socorro a produtores, como no combate à inflação. Quem defende essa linha aponta que essas reservas podem ainda:
- abastecer a população em momentos de queda na produção ou falta de alimentos;
- ser usados em programas sociais de distribuição de alimentos e no combate à fome;
- abastecer o mercado interno em momentos de fechamento de fronteiras, como visto durante a pandemia e a guerra na Ucrânia.
Outros especialistas no tema, contudo, divergem sobre a capacidade do governo de manter os armazéns com esses objetivos. Isso porque:
- estoques demandam altos investimentos de manutenção;
- mesmo com o governo vendendo o alimento mais barato, ele pode chegar caro ao supermercado devido a custos com limpeza e embalagem, por exemplo;
- o abastecimento do estoque está vinculado, hoje, à Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) da Conab, que prevê a aquisição de alimentos somente quando o valor do produto fica abaixo ou com tendência a alcançar valor menor que o preço mínimo.
Cada alimento tem o seu preço mínimo definido pela Conab com base em dados da safra, de oferta e procura, custos de produção, entre outros.
Nessa reportagem, você verá:
- Como os estoques controlariam a inflação?
- Eles podem ser usados para combater a fome?
- Os estoques estão sumindo?
Como controlaria a inflação?
Como ferramenta de controle da inflação, os estoques seriam usados em momentos de baixa oferta de determinados produtos e alta nos preços, diz Izete Bagolin, doutora em economia, professora e pesquisadora da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Ela explica que, nestas ocasiões, o governo venderia os produtos em estoque a um preço mais baixo para regularizar o mercado.
Mas, para José Guilherme, economista e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), há alguns desafios para que isso ocorra. Um deles é que o alimento precisa ser beneficiado antes de chegar ao consumidor.
Quando o governo decide liberar algum estoque, ele precisa vender os produtos para uma indústria privada realizar toda a limpeza e embalagem. Só depois disso, é que os alimentos chegam até os supermercados.
“Se o governo baixar o produto in natura [sem beneficiamento], quem me garante que o produto no supermercado vai estar mais barato? [...] Algum intermediário pode embolsar essas diferenças (entre o preço vendido pelo governo e para a população)”, afirma.
Já para Thiago Pera, da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), outro desafio é manter os estoques abastecidos em momentos em que os alimentos estão caros.
Isso porque, ao comprar parte da produção dos agricultores, o governo poderia estimular uma redução da oferta, aumentado ainda mais os preços.
Como manter estoque sem pressionar preços
Por outro lado, há saídas para manter os estoques abastecidos sem pressionar a inflação, diz o ex-diretor de política agrícola da Conab (2003 a 2013) Silvio Porto, que é professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
Para isso, o governo precisaria, primeiro, estimular o aumento da produção e da área plantada.
"Dentro da Política de Garantia de Preços Mínimos, tem um instrumento chamado 'Contrato de Opção de Venda'. O governo pode lançar esses contratos para a próxima safra, sinalizando que quer formar, por exemplo, um estoque de 1,5 milhão de toneladas de arroz e que, para isso, vai pagar um valor atrativo e compensador para o agricultor", afirma Porto.
Essa sinalização, diz ele, tende a incentivar os produtores a aumentar o plantio sabendo que a venda de parte da safra já estaria garantida. A expansão da produção, por sua vez, estimularia uma queda de preços.
Muito além do preço mínimo
O governo pode utilizar outros instrumentos para abastecer os estoques, sem precisar ficar refém do preço mínimo, diz Porto.
Uma sugestão é usar a modalidade de "Apoio à Formação de Estoques" do Programa Alimenta Brasil – antigo Programa de Aquisição de Alimentos.
Segundo o professor, o governo poderia fazer contratos antecipados com cooperativas e agricultores familiares para abastecer esses estoques.
"Um exemplo: está começando o plantio da primeira safra de feijão do próximo ano, no Sul do Brasil. Esse era exatamente o momento de o governo entrar com contratos, seja para internalizar alimentos nos estoques ou para doar parte a famílias em situação de insegurança alimentar", diz.
Regulação pelo mercado
Já o economista José Guilherme lembra que há outros atores envolvidos na regulação de preços, como as empresas privadas, que, em caso de alta ou baixa, controlam o quanto de seus estoques vão lançar ao mercado.
Além disso, ele aponta que alguns preços de alimentos são definidos no mercado internacional e que, portanto, a regulação não dependeria apenas do governo.
Função do estoque
Os especialistas divergem sobre a finalidade dos estoques.
O professor da UFPR defende que os armazéns foram criados para auxiliar o produtor, garantindo uma viabilidade econômica e permitindo que eles fiquem em dia com as contas, como financiamento da safra no banco, máquinas e funcionários.
Ele afirma que, caso o governo colocasse determinados produtos no mercado de uma só vez (para controlar a inflação), muitos agricultores não conseguiriam recuperar os seus custos, já que a alta da oferta pode abaixar os preços no mercado.
Já Porto, ex-diretor da Conab, entende que os estoques podem atuar ao produtor e ao consumidor, ao mesmo tempo, seja a partir da política do preço mínimo – fixando uma remuneração mais atrativa para o agricultor – como por meio de parcerias com cooperativas e pequenos produtores.
Para ele, é importante que os estoques façam parte de uma política de abastecimento, principalmente neste momento de insegurança alimentar.
"O direito humano à alimentação está em nossa Constituição. Temos, hoje, 33 milhões de pessoas passando fome e 125 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar e nutricional. Isso não é motivo para o governo fazer política agrícola em prol da produção de alimentos básicos?", questiona Porto.
Estoques podem ser usados para combater a fome?
Para Izete Bagolin, da PUC-RS, sim, os estoques podem ser usados para combater a fome. “Isso é um dos grandes problemas do esvaziamento ou eliminação dos estoques reguladores. Em situações de crise, você não tem a quem recorrer”, afirma.
A pesquisadora diz que, nesses períodos, o país fica à mercê de tentar encontrar substitutos para aqueles alimentos que estão em falta e que não podem ser produzidos por causa da falta de matéria-prima, por exemplo. Deste modo, a saída é comprar de outros países, com valor mais alto.
“Então, se nós tivéssemos os estoques reguladores abastecidos, teríamos menos chances ou menos gravidade em termos dos efeitos da crise provocada pela guerra, pela pandemia, pela estiagem. Enfim, estaríamos menos vulneráveis", afirma.
A pesquisadora diz ainda que os estoques poderiam ser usados em programas nacionais de distribuição de alimentos para famílias carentes, para montar cestas básicas, por exemplo.
Mas, para Thiago Pera, esse plano seria dificultado pelo fato de o Brasil ter tamanho continental. “Precisaria ter um volume muito significativo de estoques aqui, para garantir o abastecimento contínuo”, diz.
Os estoques estão sumindo?
As compras dos estoques de alimentos vêm caindo há 10 anos, afirma Sergio De Zen, da Conab. Isso porque, desde 2012, eles foram vinculados à política de preço mínimo.
Segundo ele, a redução também aconteceu por causa do encarecimento dos alimentos no campo – que impede que o valor dos alimentos fique abaixo do preço mínimo – e pelos altos custos de manutenção.
Porém, Porto critica: "O governo diz que a gestão de estoques é cara, mas muito pior é o custo da inflação para a população, sobretudo, para a de baixa renda".
De Zen acrescenta que as políticas de estoques estão desaparecendo ao redor do mundo devido à capacidade de se produzir várias safras ao longo do ano. Com isso, para ele, não há necessidade de armazenar comida.
Já Thiago Pera, da Esalq, destaca que outro motivo para a queda desse volume é a dificuldade de armazenar os alimentos por muito tempo, o que pode reduzir qualidade e aumentar desperdício.
Porto afirma que a pesquisa brasileira poderia ajudar neste ponto. No caso dos grãos e cereais, por exemplo, seria possível incentivar o cultivo de variedades (de arroz, feijão, etc) que tivessem uma durabilidade maior, diz.
Fonte: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2022/09/26/entenda-se-estoque-de-alimentos-pode-baratear-a-comida-especialistas-divergem.ghtml