Herança de Carolina Maria de Jesus é disputada na Justiça por filha e netas da escritora

'Livro da nossa avó foi traduzido para mais de 16 idiomas, e a gente não vê esse dinheiro', conta Adriana, neta da autora. A tia dela, Vera Eunice, nega que dificulte acesso das sobrinhas aos bens da escritora e afirma que os valores são depositados pela editora em juízo. A editora confirma a informação.

Herança de Carolina Maria de Jesus é disputada na Justiça por filha e netas da escritora

 

Adriana, Elisa, Eliane e Lilian, filhas de José Carlos de Jesus, um dos três filhos da escritora Carolina Maria de Jesus — Foto: Arquivo pessoal

A herança de Carolina Maria de Jesus, uma das escritoras mais lidas do Brasil, está sendo disputada na Justiça pelas netas e pela filha da autora. As netas são filhas de José Carlos de Jesus, um dos três filhos de Carolina, que morreu atropelado em São Paulo em 2016.

José Carlos morava nas ruas na época em que foi atropelado. Adriana, Elisa, Eliane e Lilian, filhas dele, entraram na Justiça para ter acesso à herança da avó e a informações sobre o patrimônio da escritora. Segundo elas, o acesso é dificultado pela tia Vera Eunice.

Elas afirmam que não são procuradas para autorizar a produção de conteúdos em nome da avó e que também estão passando por dificuldades financeiras, situação que é questionada por Vera Eunice de Jesus Lima, filha mais nova da escritora.

Segundo Daniela de Carvalho Mucilo, primeira-secretária da Comissão de Advocacia de Família e Sucessões da OAB-SP, como herdeiras, as netas têm o direito de participar da decisão sobre autorizar ou não a vinculação da imagem da escritora em produções (leia mais abaixo).

Em entrevista ao g1, Vera Eunice, de 69 anos, negou dificultar o acesso das sobrinhas aos bens da escritora e destacou que "minha mãe não tem esse dinheiro todo que elas esperam". A professora afirmou também que não tem conhecimento sobre todo o patrimônio de Carolina, apesar de relatar que está atrás de obras inéditas da mãe.

 

O que dizem as partes

 

 

  • Netas alegam passar por dificuldades financeiras e dizem que a tia dificulta o acesso delas à herança da avó.
  • Vera Eunice Jesus Lima nega dificultar o acesso a informações e diz que, para receber os valores que estão depositados em juízo, sobrinhas precisam, primeiro, concluir inventário do pai.
  • Netas querem ter mais participação nas produções que levam o nome da escritora.
  • Vera Eunice alega que sobrinhas "não conhecem história" da avó e por isso não são procuradas para falar sobre ela.

 

Ações na Justiça

 

A escritora, que morreu em 1977, começou a ficar famosa em 1958, quando trechos do diário da catadora de papel, que vivia na favela do Canindé, em São Paulo, foram publicados pelo extinto jornal "A Noite". Ela tinha cadernos com romances e poemas que começou a escrever ainda na infância, quando vivia em Sacramento, Minas Gerais.

Lançado em 1960, seu primeiro livro, "Quarto de Despejo", vendeu cerca de 3 milhões de exemplares, em 16 idiomas.

 

Carolina Maria de Jesus, uma das escritoras mais lidas do Brasil, ganha título da UFRJ

 

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As irmãs movem três processos na Justiça para ter direito sobre a herança da avó: o inventário do pai, José Carlos - que foi paralisado quando elas descobriram que, antes, teriam de fazer um para Carolina Maria de Jesus-, o inventário da avó e uma ação para que a tia informe qual o patrimônio total da autora.

 

"A Vera nega a nossa existência. O livro da nossa avó foi traduzido para mais de 16 idiomas, e a gente não vê esse dinheiro. Começamos a publicar nossa história nas redes porque precisamos", afirma Adriana Maria de Jesus, de 41 anos.

 

A tia rebate a afirmação das sobrinhas. Diz que "elas não sabem de nada da minha mãe".

"Primeiro, se fosse uma briga verdadeira, se elas tivessem amor pela avó, mas não é nisso que estão interessadas. Hoje o meu objetivo é colocar a minha mãe no alto e estou fazendo isso, elas não sabem sobre a minha mãe, elas querem participar do quê?", questiona Vera Eunice.

Carolina Maria de Jesus em 1958 na favela do Canindé, às margens do rio Tietê, onde viveu até lançar 'Quarto de Despejo' — Foto: Divulgação

Carolina Maria de Jesus em 1958 na favela do Canindé, às margens do rio Tietê, onde viveu até lançar 'Quarto de Despejo' — Foto: Divulgação

 

Homenagem no carnaval

 

Houve desentendimentos também entre as netas e a escola de samba Colorado do Brás que, em abril deste ano, homenageou a escritora com o enredo "Carolina – A Cinderela Negra do Canindé". As netas afirmam que chegaram a procurar a escola para participar do desfile e que foi prometido um carro alegórico, mas isso não se confirmou, e elas não compareceram.

O diretor de carnaval da Colorado do Brás, Jairo Roizen, conta outra história. Afirma que a participação das netas no desfile foi dificultada pela advogada delas.

"Nosso carnavalesco entrou em contato com as netas da Carolina e as convidou para conhecer o projeto. Elas já vieram em um tom de cobrança, para saber sobre autorização [do uso da imagem da escritora]."

Segundo ele, depois disso, houve uma conversa, e as netas teriam se mostrado receptivas. "Passaram o contato da advogada, que foi a pessoa que dificultou tudo, até com ameaças de que não deixaria a escola desfilar. A advogada afirmou que iria formalizar todas as exigências das netas, nós ficamos esperando por isso, mas nunca aconteceu", conta.

 

Separadas na infância

 

Apenas Lilian, das quatro netas, não mora no estado de São Paulo, mas em Santa Catarina.

Elas cresceram separadas e dizem que só se reencontraram pessoalmente em setembro de 2021, na inauguração da mostra "Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros" do Instituto Moreira Sales (IMS).

"A nossa mãe nos abandonou, nosso pai era alcoólatra, então, quando eles se separaram, cada uma foi mandada para um canto. Eu só tive conhecimento de quem era minha avó e sobre a importância dela de verdade com uns 27, 28 anos", relata ela.

Após a separação dos pais, Adriana e Eliane chegaram a morar com Vera Eunice por períodos diferentes durante a adolescência. Elas afirmam que sofreram agressões físicas e verbais na casa da tia.

Questionada pelo g1 sobre as agressões, Vera apenas afirmou que não gostava quando as sobrinhas "tiravam nota baixa na escola".

Elas contam que as dificuldades financeiras aumentaram durante a pandemia e, desde 2021, passaram a usar as redes sociais para pedir ajuda.

 

"Nós não estamos passando fome, temos frango e ovo para comer. Se eu falar para você que estamos passando fome, vou estar mentindo. Já vivi muito pior, mas nós também merecemos ter o direito de ser reconhecidas como neta de Carolina", afirma Eliane Carvalho de Jesus, de 47 anos, que vive em Parelheiros, na Zona Sul da capital, com os quatro filhos.

 

"Nós só fomos procuradas sobre assuntos referentes a nossa avó duas vezes. O IMS nos procurou sobre a exposição, e a Companhia das Letras. Qualquer outra coisa sobre a nossa avó nós não temos conhecimento, a estátua dela foi feita sem a nossa autorização, por exemplo", afirma Adriana.

José Carlos de Jesus, filho da escritora Carolina de Jesus.  — Foto: Arquivo pessoal/ Adriana

José Carlos de Jesus, filho da escritora Carolina de Jesus. — Foto: Arquivo pessoal/ Adriana

 

O que diz Vera Eunice

 

Vera Eunice Jesus Lima, filha de Carolina Maria de Jesus — Foto: Arquivo pessoal

Vera Eunice Jesus Lima, filha de Carolina Maria de Jesus — Foto: Arquivo pessoal

Em entrevista ao g1, Vera Eunice Jesus Lima afirmou que, enquanto estava vivo, todos os ganhos oriundos de produtos no nome de Carolina Maria de Jesus eram divididos entre ela e o irmão José Carlos de Jesus. O terceiro filho da autora, João José de Jesus, morreu em 1977.

"Até 2016, nós recebíamos tudo em conjunto, nunca peguei um 'tustão' do meu irmão. Existem cartas que provam, todos os contratos que eu tenho assinados foram em conjunto com ele. Depois que ele faleceu, o valor da Editora Somos, por exemplo, responsável pela publicação dos livros, foi colocado em juízo e, para ter acesso, elas [as sobrinhas] precisam concluir o inventário. Mas isso não depende de mim, depende da Justiça", afirmou Vera.

 

"Elas falam que eu estou segurando o dinheiro de Carolina, mas eu não preciso disso. Isso é disputa delas, minha mãe não tem esse dinheiro todo que elas esperam. Sou funcionária pública e trabalho na prefeitura, meus filhos estão tudo formados, o que eu quero é levar o nome da minha mãe para cima", continua.

 

 

Inventário

 

Segundo a advogada das irmãs, Luana Romani, o inventário de José Carlos ainda não foi concluído porque é necessário efetuar o pagamento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), cerca de R$ 20 mil, e elas não têm como quitar o valor.

Já o inventário de Carolina Maria de Jesus não foi concluído por falta de documentos - que não teriam sido anexados por Vera Eunice, diz Romani.

"Em 2016, fui contratada, inicialmente pela Adriana, para o inventário do José Carlos, filho de Carolina, falecido em maio de 2016. Nesse momento, tomei conhecimento que ele nunca tinha recebido nada dos direitos de sua mãe e, segundo a Adriana, a tia Vera sempre recebeu e nada pagava ao irmão", afirma a advogada.

"Abri o inventário dele e meses depois descobri que sequer o inventário de Carolina, falecida em 1977, tinha sido providenciado. Ao protocolar para abrir o inventário da escritora, descobri que a Vera tinha feito um inventário de Carolina, mas mentiu em juízo dizendo que a mãe não deixou nada de herança", continua.

Porém, Vera Eunice nega que tenha feito um inventário e afirma que já entregou toda a documentação necessária para a conclusão do processo. "A minha advogada conversou com a advogada delas, e nós decidimos por fazer o inventário da minha mãe em conjunto. Eu entreguei tudo o que pediram, mas ficou faltando uma documentação da parte delas, minha advogada solicitou que elas entregassem e isso foi negado", afirma.

Carolina Maria de Jesus e os três filhos: João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus. — Foto: Reprodução/ Redes sociais

Carolina Maria de Jesus e os três filhos: João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus. — Foto: Reprodução/ Redes sociais

Segundo a advogada das irmãs, depois que conseguiu iniciar o inventário da escritora, a Companhia das Letras fechou um contrato, e as netas receberam um valor, juntamente com a tia. Elas também foram procuradas pelo diretor artístico do IMS, João Fernandes, e receberam sua parte.

Pela exposição no IMS, tanto as netas quanto Vera Eunice receberam R$ 200 mil.

Vera Eunice alegou que o inventário da mãe demorou a ser aberto porque ela não sabia que esse trâmite era necessário. Ela diz que só descobriu "a importância do inventário", após a morte do marido. Vera alega também que paga todos os impostos necessários para receber o valor da editora responsável pelas publicações dos livros da Carolina.

"Existe um tratamento desigual com elas, o irmão nunca foi aceito por Vera. Agora estamos brigando com a Somos Educação, editora responsável pela publicação dos livros da autora, porém, a parte das meninas foi depositada em juízo, causando um prejuízo somente para as quatro de quase R$ 20 mil, pois para que elas tenham acesso ao dinheiro devido desde a morte do José Carlos, precisam primeiro pagar esse valor em imposto. A Vera não paga esse valor e, desde 1977, recebe das editoras normalmente", afirma.

Cabe destacar: o depósito da editora para as netas é realizado em juízo porque o inventário do pai delas ainda não foi concluído. Vera Eunice, neste caso, não tem envolvimento com a partilha nem com o processo.

Romani afirma que tudo o que foi produzido em nome da autora sem autorização das netas pode ser barrado judicialmente.

As netas afirmam ainda que a tia possui uma procuração assinada pelo pai delas que dá direito sobre a gestão da parte dele da herança, mas, segundo a advogada, essa informação nunca foi confirmada.

"Meus pais eram casados no papel, quando se separaram, ele [José Carlos] fez uma procuração passando todos os direitos dele para a tia Vera para que a nossa mãe não tivesse direito a nada. A Vera então passou a dar um valor para ele, coisa pouca, e sempre fazia ele assinar um monte de papéis", afirma Eliana.

Segundo Vera Eunice, o documento que ela possui assinado por José Carlos é a documentação da venda do sítio em Parelheiros que pertencia a Carolina. "Quando a minha morreu, o Zé Carlos ficou morando no sítio, e como ele estava passando por dificuldades financeiras, queria vendê-lo. Minha mãe me deixou uma carta pedindo para que o sítio nunca fosse vendido, quando ele insistiu na ideia, nós decidimos dividir o sítio", afirmou.

"Meu marido comprou a parte dele, então o sítio é nosso. É esse documento que eu tenho, da venda do sítio, está tudo certinho", continua Vera.

g1 procurou a Editora Ática, que detém os direitos autorais da obra "Quarto de Despejo". Segundo a editora, esses valores "são depositados de forma igualitária para os herdeiros da autora Carolina Maria de Jesus. Com o falecimento do filho José Carlos, os pagamentos dessa parte são realizados em juízo, uma vez que a família dele não converge judicialmente sobre os direitos sucessórios vinculados à obra".

Afirmou ainda "que vem tentando pagar os valores da forma mais célere possível, e aguarda a devida regulamentação por parte dos herdeiros para que o montante em juízo seja transferido a quem de direito com a maior rapidez possível".

g1 teve acesso aos autos em que a editora afirma que está depositando o valor em juízo por conta da dúvida "a quem pagar", e que "não se sabe de fato se Adriana tem poderes para receber em nome de todos os outros herdeiros de José Carlos".

De acordo com os autos, José Carlos possui mais herdeiros que não foram colocados no inventário, e o valor depositado em juízo para os herdeiros dele é de cerca de R$ 189 mil reais.

 

Direitos para as netas

 

Segundo Daniela de Carvalho Mucilo, primeira-secretária da Comissão de Advocacia de Família e Sucessões da OAB-SP, com a morte José Carlos de Jesus, filho do meio da escritora, as netas ocupam o lugar de herdeiras. "Com o falecimento de Carolina, ela deixou bens para os filhos. Quando determinado filho falece, a herança é transferida para as filhas dele, ou seja, netas da escritora. Elas possuem o direito da herança. Tudo o que a filha recebe, elas também terão direito a receber na proporção de cada neta."

Ainda segundo Daniela de Carvalho Mucilo, qualquer conteúdo que seja produzido no nome da escritora também precisa da autorização das netas para que seja feito.

"Tudo que é exigido autorização da filha de Carolina, também precisa ser exigido das netas que representam o pai morto, já que elas passam a ocupar o lugar dele como herdeiras. Elas são herdeiras, não importa se estão como netas, elas acabam entrando no mesmo pé de igualdade da tia se, por acaso, a produção de algo no nome da escritora necessitar da autorização de um herdeiro", afirma.

Sobre a suposta procuração que as netas dizem que Vera Eunice possui no nome do pai delas, a especialista em direito familiar informa que, "quando a pessoa morre, a procuração perde validade".

"Quando esse filho falece, ele transfere o valor dele para essas netas, elas têm direito a herança. O que pode desviar essa sucessão legitima é eventualmente a Carolina ter deixado um testamento para essa filha, deixando uma parte maior para ela. No caso da suposta procuração, ela tem um limite de validade. Quando a pessoa revoga a decisão, quando se torna incapaz ou em casos de falecimento a procuração acaba", explica.

 

Fonte: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/08/18/heranca-de-carolina-maria-de-jesus-e-disputada-na-justica-por-filha-e-netas-da-escritora.ghtml